sábado, 27 de fevereiro de 2010

Salomão 2 - Vivemos um eterno retorno

Ao ingressar nessa pequena embarcação, além dos meus companheiros trago comigo todas as minhas desventuras e o peso da sociedade que me enrijece o tronco. Sou um homem que tenho muito dinheiro e tudo o que ele pode comprar eu tenho. Posso comprar inclusive o respeito e a admiração das pessoas. Sou daqueles que não se contenta com respostas prontas, aprofundo em questões que muitos sábios não conseguem responder. Além disso, me aplico diligentemente ao trabalho e na intervenção da natureza pelas minhas mãos, por acreditar que dessa forma dou mais significado a minha vida.

Diferentemente dos meus semelhantes, posso me considerar um indivíduo, porque minhas posições sociais e aplicações me condicionam a isso. Sou uma colcha de retalhos, formado por pedaços e tiras, dos tempos e dos valores, e tenho esses pedaços suturados pela fibra humana das minhas relações com as pessoas.

Acredito que a história da humanidade é como um livro lido várias vezes, as coisas vão e vem e se repetem com o tempo. Apenas as disposições do coração do leitor sofrem alguma alteração. Mas geração vai e geração vem, levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus destinos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.

Todos nos cansamos com nossas atividades de tal maneira que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. Sempre ansiamos pelas novidades, e queremos sempre saber os fatos das revistas da próxima semana. Entramos sistematicamente em nossas caixas de email esperando uma nova notícia, um novo sinal de vida, uma nova alegria.

E isso não é novo, a invenção de Gutenberg não ganhou notoriedade em vão. O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos séculos que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas posteriores também não haverá memória entre os que hão de vir depois delas.

Salomão 1 - Um convite para uma viagem pelos sentidos da vida


Te convido para nas próximas 16 semanas embarcar comigo numa viagem em busca dos sentidos da vida. A nossa embarcação será o livro de Eclesiastes, que permitirá que naveguemos pelos mares da sabedoria e das questões pertinentes ao sentido da vida. Nesse percurso visitaremos as ilhas da vaidade, o arquipélago do tempo, o estreito da corrupção, a baia das riquezas, o porto da justiça e a praia do conhecimento de si mesmo e do Eterno. Espero que você assim como eu, aproveite essa oportunidade para compreender melhor a razão da sua existência.

Eu sou Salomão, o comandante desse barco. Vivo no tempo presente, mas olho para trás e vejo com os olhos de hoje o eterno ontem. No final da minha vida, decidi fazer essa viagem para refletir sobre o que valeu ou não a pena. Achei que seria necessário também me isolar em algum lugar e contar com 3 amigos para me ajudar na tarefa de cuidar das coisas do navio e de encontrar razão para a existência. Para isso, nada mais formidável do que uma longa viagem pelos oceanos.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Dois golpes na razão


Ao longo do desenvolvimento da filosofia, desde a filosofia antiga (séc. VI a.C), passando pela filosofia medieval (séc.VIII ao séc.XIV d.C), Renascença (séc.XIV ao séc. XVI), Moderna (XVII a meados do séc. XVIII), Iluminista (séc. XIX) e chegando até a filosofia contemporânea uma ideia que persiste é a confiança crescente na razão. O otimismo filosófico com relação a razão chegou ao seu auge no século XIX, quando muitos afirmaram que os seres humanos haviam alcançado a maioridade da racionalidade e que o avanço da razão se desenvolvia plenamente para que o conhecimento completo da realidade e das ações humanas fosse atingido.

Contudo, Marx, no final do séc. XIX, e Freud, no início do séc. XX, colocaram em cheque o otimismo racionalista.

Marx descobriu que temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com nossa própria mente e por nossa própria vontade, escolhendo e formando opiniões de maneira racional e livre. No entanto, Marx descobriu uma força invisível que age em nós que é um conjunto de ideias e valores que influenciam nossas escolhas, gostos, estilos de vida e estrutura de pensamento. A essa força que é social, deu-se o nome de ideologia.

Freud, por sua vez, demonstrou que os seres humanos também têm a ilusão de que tudo quanto pensam, fazem, sentem e desejam estaria sob o controle da nossa consciência. No entanto, Freud descobriu que existe outro poder invisível que age sobre nós, sem que a gente o saiba. A esse poder que domina e controla e domina de forma invisível e profundamente nossa vida consciente, ele deu o nome de inconsciente.

Assim, a crença pueril de que a razão nos levaria sempre além e ajudaria a resolver todos os nossos problemas é desfeita pela identificação de outras forças que atuam em nós sem que a gente o saiba ou possa controlá-las.

Por Eliéser Ribeiro

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O apagão da liderança


Um verdadeiro apagão da liderança corrói as empresas, escolas, famílias, comunidades. Por toda a parte percebemos a escassez de líderes, não só no mundo político. Ou esbarramos com a proliferação de indivíduos em posição de liderança, cujos valores são no mínimo questionáveis. Basta olhar ao redor ou ler os jornais para nos surpreendermos cada dia com as peripécias de líderes oportunistas.

O frustrado Encontro de Copenhague é o símbolo mais recente desse Apagão a nível mundial. Foi bem mais profunda a origem da severa turbulência que abalou a estrutura financeira do mundo no final de 2008, causando enorme onda de desemprego e afetando a vida de milhões de pessoas. O desenrolar da crise revelou que não se tratava apenas de um problema de escassez de crédito, mas também de escassez de líderes responsáveis. Assistimos a uma crise de valores na qual interesses pessoais de curto prazo puseram em risco a sustentabilidade do sistema e levaram ao caos várias empresas consideradas ícones do mundo moderno, fazendo ruir as bases de economias antes tidas como sólidas. A crise é também de liderança!

Mas não é apenas nas esferas política e empresarial que sentimos a falta de líderes inspiradores. Seus sintomas também se manifestam nas escolas: professores que raramente conseguem despertar a atenção de alunos desmotivados e indisciplinados; educadores intimidados por crianças que sequer chegaram a adolescência; uso crescente da violência verbal e até mesmo física para resolver desavenças; jovens que muitas vezes têm mais informação que mestres despreparados. Em muitas comunidades, as adversidades de infraestrutura básica são tão severas que o ofício de ensinar transforma-se quase que diariamente em uma operação de guerra.

Nosso modelo educacional está em geral formando profissionais para uma realidade já ultrapassada. Nossos educadores não estão conseguindo orientar estudantes para enfrentar os desafios do futuro. Preconceitos e vários tipos de discriminação estão fortemente presentes entre estudantes, pais, professores, diretores e funcionários das escolas brasileiras.

Muitas vezes, o que ocorre nas salas de aula é reflexo do que acontece em casa. Pais que não sabem mais negociar limites e reagem com incrível submissão à hábitos e desejos absurdos e irrealísticos dos filhos. Infelizmente, nos lares, deixaram de ser exceção as histórias de filhos agredindo e, em casos mais extremos, até assassinando os próprios pais. Ficamos chocados com os casos de adultos mantendo filhas menores em cativeiros e com a prática de abuso sexual na própria família. Também aumenta o numero de divórcios, muitas vezes causados pela falta de compartilhamento da liderança, que tem levado um dos membros a buscar alternativas de vida à tirania do outro.

Nas ruas e em eventos públicos e esportivos, assistimos estarrecidos aos atos de vandalismo e violência que assustam os transeuntes que saem de casa para trabalhar ou em busca de diversão e lazer. Muitas vezes a competência para influenciar pessoas e para aglutinar interesses são utilizados para prejudicar inocentes como é o caso de torcidas organizadas cujos integrantes se cadastram formalmente, não apenas para torcer pelos seus clubes, mas para provocar, agredir e travar verdadeiras batalhas campais, como se estivessem em uma guerra.

Nas empresas, ainda predominam mais chefes que líderes. Faltam sucessores preparados e assistimos ao triste espetáculo de empresas sólidas se desmancharem quando o fundador desaparece. Ficamos surpresos ao tomar conhecimento da perda de verdadeiras fortunas destinadas a formar gerentes mais eficientes, mas que não conseguem formar líderes eficazes. Muitos empreendimentos potencialmente vitoriosos sucumbem diante da triste constatação: “a ideia é boa, mas infelizmente não temos quem possa liderar esse projeto!”.

A maioria dos profissionais queixa-se de que não consegue o tão sonhado equilíbrio entre as diversas dimensões das suas vidas -- profissional, familiar, pessoal, espiritual, financeira, saúde, cidadania. O grau de infelicidade e frustração é muito maior do que imaginamos em vários segmentos, não apenas entre executivos, mas também entre médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, comerciantes, empreendedores de modo geral.

As causas são recorrentes: dificuldades para liderar equipes, falta de comprometimento das pessoas, desavenças entre sócios, ausência de reconhecimento, problemas de comunicação, sentimento de injustiça, resultados insatisfatórios, conflito de valores, sobrecarga e mau gerenciamento das prioridades e do tempo. Precisamos repensar os conceitos e a pratica da liderança, se desejamos de fato construir famílias mais felizes, empresas mais saudáveis e comunidades mais solidárias.



Por César Souza (presidente da Empreenda, empresa de consultoria em estratégia, marketing e recursos humanos, além de autor e palestrante)

Uma boa definição para se buscar

"Não escolhi ser um homem comum.
É meu direito ser diferente, ser singular, incomum, desenvolver os talentos que Deus me deu.
Não desejo ser um cidadão pacato e modesto, dependendo sempre de alguém.
Quero correr o risco calculado, sonhar e construir, falhar e suceder.
Recuso trocar incentivo por doação.
Prefiro as intemperanças à vida garantida.
Não troco minha dignidade por ajuda de outros.
Não me acovardo, nem me curvo ante ameaças.
Minha herança é ficar ereto, altivo e sem medo, pensar e agir por conta própria e, aproveitando os benefícios de minha criatividade, encarar arrojadamente o mundo e dizer:
Isto é o que eu sou."
(Bertold Brecht)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Arruda e a Veja

No escândalo do governado do DF, José Roberto Arruda, tem muitas entidades e pessoas envolvidas. Entre elas encontra-se nossa “estimada” Revista Veja, que tem o pretenso objetivo de buscar a verdade.

A revista hoje não poupa Arruda, mas historicamente sabemos que é tendenciosa e pende para a desonestidade. A revista da Editora Abril não pode escapar de sua própria história: por mais agressiva que procure parecer agora, ao noticiar o escândalo de Brasília, não dá para esquecer que, em julho do ano passado, Veja havia oferecido ao então governador a entrevista principal da edição número 2.121 em suas outrora nobres páginas amarelas.

"Ele deu a volta por cima", dizia então o título da entrevista, que procurava mostrar o governador como um político capaz de superar seus próprios erros e seguir adiante. Na ocasião, chegou a ser noticiado que a decisão editorial, honrosa para José Roberto Arruda, havia passado pelo departamento comercial da revista.
O governo de Brasília havia firmado parceria com a Abril para distribuir milhares de exemplares de Veja nas escolas públicas do Distrito Federal, mas quem revelou a negociação não foi a grande imprensa. Foi uma blogueira de Brasília, Paola Lima, que publicou cópias da documentação que previa a compra de revistas, no total de R$ 442.462,50, durante um ano.

Esse foi o preço da entrevista de Arruda.

Esse blogueiro recomenda: não gaste dinheiro com essa Revista.

Texto adaptado do site:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=577JDB007

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Quem poderia imaginar?


C.S. Lewis

A realidade, pela minha experiência, além de ser complicada, costuma ser estranha. Ela não é clara, não é óbvia, raramente é do jeito que você esperava. Por exemplo, quando você entendeu que a Terra e os outros planetas giram em torno do sol, você naturalmente achava que todos os planetas tivessem sido feitos para se emparelhar – todos com a mesma distância uns dos outros, ou pelo menos a distâncias que proporcionalmente aumentam; que fossem do mesmo tamanho, ou pelo menos que fossem ficando maiores ou menores à medida que se distanciassem do sol. Na verdade, você não encontra explicação ou razão (que nós podemos ver) para os tamanhos nem para as distâncias. Alguns planetas têm uma lua; um tem quatro; outro, duas; alguns nenhuma e outro tem um anel.

A realidade costuma, de fato, ser algo que você jamais teria imaginado. Essa é uma das razões por que eu acredito no cristianismo. Trata-se de uma religião que você nunca teria conseguido inventar. Se ele só nos oferecesse o tipo de universo que sempre desejamos, teria a forte impressão de que o estaríamos inventado. Porém, na verdade, não se trata do tipo de coisa que alguém pudesse ter inventado. Ele tem aquela singularidade imprevisível que as coisas reais têm.

Excertos de Cristianismo Puro e Simples.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Mais uma pá de terra na esperança


No último domingo (07/02/10), foi enterrado Alcides do Nascimento Lins, de 22 anos. Junto com ele foi sepultado o sonho de uma família e a esperança de um futuro melhor. Ele se tornou um exemplo de superação para todo o país, ganhando até espaço na mídia nacional por ter conseguido superar todas as barreiras sociais (origem pobre e ensino de escola pública) e entrar no mundo dos brancos (universidades federais). Ele era de origem negra e a sua mãe ganhava a vida juntando lixos e sucatas para vender e, além disso, foi aprovado em 1º lugar no vestibular de Biomedicina da UFPE.

A sua morte chama atenção, porque o caso dele é diferente, anômalo. Era um pássaro fora do ninho, era um negro no meio dos brancos. Mas apesar de ter ingressado no mundo dos brancos, ele ainda era negro, morava com os negros, tinha renda de negros e foi morto por seus parceiros que não tiveram a mesma força para superar todos os desafios vencidos por Alcides. Ele não podia fugir do destino de milhares iguais a ele que tiveram a vida abortada pela violência e pelas condições sociais que os oprimem.

Por que a sociedade brasileira não se comove com milhares de outros amigos de Alcides que morrem da mesma forma todos os dias em favelas e morros? Talvez Alcides seja considerado mais digno, porque conseguiu superar os desafios que os seus colegas de bairro não conseguiram. Talvez Alcides seja mais branco do que eles.

Vão acusar os assassinos de Alcides, como os mais facínoras de todos. Mas antes disso vale à pena refletir sobre a vida que eles tiveram antes de pegar numa arma. Porque “do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem". Bertolt Brecht


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O homem da cabeça de papelão


Autor João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— Vossa excelência faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! Vossa excelência terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

João do Rio foi o pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca, que também usou como disfarce os nomes de Godofredo de Alencar, José Antônio José, Joe, Claude, etc., nada ou quase nada escrevendo e publicando sob o seu próprio nome. Foi redator de jornais importantes, como "O País" e "Gazeta de Notícias", fundando depois um diário que dirigiu até o dia de sua morte, "A Pátria". Contista romancista, autor teatral (condição em que exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimarães Passos. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite", "A Mulher e os Espelhos", "Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A Alma Encantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religiões no Rio" e "Rosário da Ilusão", que contém como primeiro conto a admirável sátira "O homem da cabeça de papelão". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881, faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1921.

O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196.