quarta-feira, 25 de agosto de 2010

REALIDADE - FERNANDO PESSOA

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade …

Há vinte anos!…
O que eu era então! Ora, era outro…
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada…

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)…
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos…
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse…
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer…

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada…

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso…
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse…
Verdadeiramente se desse…
Sim, carnalmente se desse…

Sim, talvez…

3 comentários:

  1. No meu caso, nem se passaram 20 anos e eu já estou com saudade!

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  2. É meu nobre amigo, esse dilema do Pessoa vai bater forte quando vc voltar.

    Vc vai ver...

    Fraterno abraço

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  3. Belo texto do Pessoa!
    Tenho poucas saudades de quem eu era. A maturidade traz suas dores, mas também traz a leveza de aceitar quem realmente se é (será que é possível realmente saber quem se é?), sem culpas ou cobranças demasiadas. De uma coisa eu tenho saudade: da inocência de uma alegria que ficou há vinte anos ...

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