terça-feira, 9 de março de 2010

Diversidade Cultural



por Antonio A. Dayrell de Lima

A sociedade brasileira reflete, por sua própria formação histórica, o pluralismo. Somos nacionalmente, hoje, uma síntese intercultural, não apenas um mosaico de culturas. Nossa singularidade consiste em aceitar - um pouco mais do que outros - a diversidade e transformá-la em algo mais universal. Este é o verdadeiro perfil brasileiro… Sabemos, portanto, por experiência própria, que o diálogo entre culturas supera - no final - o relativismo cultural crasso e enriquece valores universais.

Passado o período colonial, ficamos mais permeáveis à troca de idéias e ao influxo de conteúdos culturais que vêm do exterior, fora da esfera luso-africana. Também aplaudimos, por razões políticas óbvias, o livre fluxo de idéias: é um passaporte para a democracia e o reconhecemos como uma garantia do respeito aos direitos humanos.

O mundo, infelizmente, não apresenta historicamente um jogo simples, equilibrado ou mesmo limpo na matéria: as disproporções em termos da escala ou da resistência das culturas, assim como da difusão das mensagens e dos produtos culturais, são com efeito muito grandes… A globalização, neste aspecto, apresenta uma preocupante tendência à homogeinização cultural, quando não à hegemonia pura e simples em certos setores culturais.

Mas ‘diversificar é preciso’: a diversidade cultural é, em um certo sentido, o próprio reflexo da necessidade abrangente da múltipla diversidade de vidas na Natureza, a fim de que essa possa como um todo renovar-se e sobreviver. A cultura é a ‘natureza’ do homem. A diversidade cultural pode ser vista, por conseguinte, como a nossa ‘biodiversidade’ - aquela que deveríamos preservar, se não quisermos estiolar em um mundo globalizado que seria desprovido dos conteúdos, valores, símbolos e identidades que nos dizem intimamente respeito.

Hoje vivemos em um mundo que estimula a automia do econômico - o que implica privilegiar considerações comerciais em vez de outros aspectos societais (como a emergência internacional da AIDS), enquanto, por sinal, promessas não cumpridas em favor do livre-comércio se empilham, já que nunca se contempla a produção dos países em desenvolvimento…

O fato é que, obviamente, as produções de natureza cultural não são meros serviços remuneráveis, oferecidos à sociedade por pessoas talentosas ou de sucesso. A cultura não apenas agrada, esclarece ou diverte com produtos que podem ser internacionalmente comercializados, como também provém e faz parte da própria trama das sociedades - inclusive ajudando-as a sustentar-se através de atributos que pertencem ao âmago de cada um, isto tanto nas sociedades modernas quanto nas tradicionais. Os produtos culturais no sentido mais lato são a verdadeira teia que mantém as sociedades coerentes e vivas: deixar perecer, sutil ou grosseiramente, a produção cultural endógena de um povo, substitutindo-a por outra totalmente estranha, por melhor e mais cintilante que possa ser, é empobrecer este povo em sua própria identidade.

O comércio cultural não pode ser apenas o resultado de cálculos para obter vantagens comparativas que predominariam, seguindo um frio racionalismo econômico. Produtos e serviços culturais não podem ser tratados unicamente como mercadorias. Será que o quadro das disciplinas de comércio internacional é amplo o suficiente para comportar todas as complexidades do assunto?

Para usar uma analogia muito próxima à esfera nacional, envolvendo o mesmo conceito - o respeito pela identidade do outro - há, efetivamente, a necessidade de uma ação afirmativa internacional quanto à proteção da diversidade cultural. Poderíamos, em toda sinceridade, retirar a autonomia de qualquer governo na implementação de políticas públicas destinadas a proteger setores desavantajados do cenário cultural, quando confrontados somente pelas regras - ou o caos - do mercado global? A resposta é claramente não.

Acreditamos sinceramente que um enfoque meramente mercadológico, o do livre-comercio global, não seja o único parâmetro que deveríamos usar no tocante à questão da circulação de bens e serviços culturais.

O Brasil defendeu, como oportuna, na 32ª Conferência Geral da UNESCO - recém-realizada em Paris, com a presença do Ministro da Cultura e artista Gilberto Gil — a negociação, a curto prazo, de uma Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural.

Esta idéia foi esmagadora e explicitamente defendida também por mais de 100 países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Um pequeno grupo de países (6 a 8) - encabeçados pelos Estados Unidos - prefeririam que a matéria fosse exclusivamente tratada na OMC. Mas, após árduos entendimentos, foi dado à Organização, por consenso, um mandato de negociação.

É importante que a sociedade brasileira se intere dos debates internacionais que ora se iniciam formalmente - para que possa ser estruturada e formulada, de forma transparente, uma posição do Governo brasileiro afinada com todos os interesses nacionais em jogo.

*Antonio A. Dayrell de Lima é embaixador brasileiro e delegado permanente do Brasil junto à UNESCO


Texto disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2003/10/15/diversidade-cultural-por-antonio-a-dayrell-de-lima/ Acesso em 09/03/2010

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